Rock e Macumba celebrando a Música




Trabalhei pro censo demográfico do IBGE no ano 2000. A missão: ir de casa em casa, de uma quadra inteira do bairro da Pedreira, e fazer perguntas do tipo: você é analfabeto? Visitei todo tipo de gente: doutores, analfabetos, velhinhas solitárias, velhos loucos, moças bonitas e gente que nunca estava. Algumas residências quase atravessavam de uma rua à outra, revelando ambientes luxuosos e insuspeitados, enquanto outras caiam aos pedaços, escondendo ora uma dona de casa sem graça, ora um traficante, baleado, me diziam. Ao final de um mês e meio, tinha meus sei-lá-quantos questionários preenchidos: umas mil pessoas ocupavam aquele amontoado.
A Pedreira, bairro onde eu cresci, deve ter umas 50 quadras, imagino. Umas cinqüenta mil pessoas. 

Sexta-feira fui pra Quatipuru, onde os Destruidores de Tóquio estavam organizando mais um Invasão Caipira, agora em um terreiro de Umbanda. Quatipuru tem treze mil habitantes. 
Fomos num microônibus, que o Alex, baixista da banda, arrumou. Pelo MSN, eu, querendo me orientar, pergunto pra ele: “quem é o cara da van, filho?” Alex: “É a minha tia”. Ta bom, então.
Na viagem, os velhos de guerra: João Sincera, Kamilla, Jack, Camilo, Marcelo (da Rádio Tabajara) e Raul (o jornalista oficial) e sua namorada, não sei se oficial. Uma adedonha indie se inicia: ganha quem conseguir dizer mais nomes de bandas que comecem com T, Z, L, etc. Eu perco muito e fico mais na cerveja.
Depois de umas três horas de bandas, chegamos à casa, que tem um anexo nos fundos, onde a festa/ritual vai acontecer. Somos recebidos pelo Jairo e pela Dona Ana.

De uma janelinha do terreiro, enquanto confabulo um jeito de conseguir mais cerveja, vejo tudo começar: Dona Ana, a mãe-de-santo, inicia cantando um dos pontos (de macumba, como dizem, quase numa gíria, embora seja um ritual de Umbanda), acompanhada de, vamos dizer assim, dois backing vocals, um trio de mulheres, também cantoras, e percussionistas. Todos de branco. Uma melodia simples e bonita, daquelas que alguns compositores perseguem.
Junto com eles, no “palco”, estão os Destruidores de Tóquio, esperando. Quando ela pára de cantar, a banda de Capanema toca a mesma canção, agora com guitarras, baixo e bateria, acompanhados também dos percussionistas. O Impacto é grande, pela destreza com que fazem a transição entre a primeira versão, apenas com tambores e vozes, e a versão elétrica. Quando terminam, Dona Ana assume novamente o “vocal” e entoa mais um ponto, que é seguido por nova versão elétrica. Num golpe de mestre, agora emendam o ponto elétrico com a introdução de “10 anos” e seu verso: “eu quis ser assim, feito despacho numa encruzilhada”.
O solo de guitarra que faz essa passagem também faz parecer que é a primeira vez que eu ouço a música, que eu já ouvi 11mil vezes. 
 







O terreiro, transformado numa casa de rock, é uma pequena construção em barro e cimento. E, mesmo pra um olhar não-bestificável, era insólito ver a iluminação, típica de shows, refletindo em estrelas prateadas fixadas na parede, dando um ar psicodélico que saia de dentro daquela casinha de joão-de-barro, direto pra visão de quem tinha decidido assistir a tudo lá de fora.
O evento segue o mesmo esquema ao longo do show, até a versão de um ponto que inicia dizendo: “Arreia, caboco, arreia”. Belo arranjo. E o título me lembrou “Run, Devil, Run”, do velho Macca. É difícil ser simples numa cidade de um milhão e meio de habitantes. É mais fácil se tornar um simples alienado.  




O show acaba e Alex anuncia: “Agora gostaríamos de chamar os caboclos do Octoplugs”. E eles vêm com nova formação: Bárbara é a vocalista de voz bonita, que agradece ao(s) público/congregantes pelos aplausos, enquanto a guitarra de Flávio a acompanha com gentileza e fúria.  “Agora vamos tocar um blues inspirado num carimbo”, diz ele.  Ta tudo em casa, pai.





 Eu e Jack entramos pra fazer uma jam stereoscópica, com Messias, João e Alex se revezando na bateria. No meio da jam, Camilo entra e a gente toca “Eu sou feio, mas ela gosta de mim” e “A lira”.  O lugar é quente, muito quente, e as velas, fumaças de incensos e outras se misturam pelo chão com os pedais de efeitos e cabos de instrumentos. Não há sequer um aniversariante no dia, então Jack dedica “Eu envelheço” a todos os “desaniversariantes”. O público, metade de amigos, é gentil com a gente, e a gente é gentil com o público. Tocamos Cherole, a pedido de Raul. Ele ri, enquanto filma tudo.  


Ao final todos entram no terreiro, se abraçam, cantam, tocam tambor, e vemos Dona Ana incorporar o Baiano, a Dona Nega, caboclos que sempre estão por ali. João da Mata, caboclo dono do terreiro, não aparece. “Ele não tem aparecido muito”, me conta Nazo.
Ao longo da festa, lembro de ouvir João, o Sincera, retrucar alguém que dizia que um evento como esse teria rendido aos Destruidores de Tóquio a aprovação na seletiva da Serasgum: “essa banda não precisa de festival, essa banda não precisa de nada”. Não é bem assim, eu sei, mas entendi. É Isso aí, menino João.









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